sexta-feira, dezembro 12, 2008

Conto de Natal




O Suave Milagre



Ora entre Enganin e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega de um cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as outras de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara parra os farrapos da enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Também a ela a doença a engelhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E, sobre ambos, espessamente a miséria cresceu como bolor sobre cacos perdidos num ermo. Até na lâmpada de barro vermelho secara há muito o azeite. Dentro da arca pintada não restava um grão ou côdea. No Estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira. Tão longe do povoado, numa esmola de pão ou mel entrava o portal. E só ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de Deus na Terra Escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento!
Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu do seu farnel com a mãe amargurada e, um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse rabi que aparecera na Galileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso reino, de abundância maior que a corte de Salomão. A mulher escutava, com olhos famintos. E esse doce rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah esse doce rabi, quantos o desejavam, quanto desesperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Judeia, como o sol que até por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia.
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A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha.
A mãe retomou o seu canto, a mãe mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar duma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse rabi que amava as criancinhas, ainda as mais pobres, sarava os males, ainda os mais antigos. A mãe apertou a cabeça engelhada:
- Oh filho! E como queres que te deixe, e me meta aos caminhos, à procura do rabi da Galileia?
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Como queres que te deixe? Jesus anda por muito longe e nossa dor mora connosco, dentro destas paredes e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o rabi tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota?
A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou:
- Oh mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar! E a mãe, em soluços:
-Oh meu filho como te posso deixar! Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladraria da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce rabi, Oh filho! Talvez Jesus morresse…Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe, o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.
De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:
-Mãe, eu queria ver Jesus…
E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:
-Aqui estou.

Fonte: O Suave Milagre / Eça de Queirós

4 comentários:

mfc disse...

O Eça também era tocado pelo misticismo. Os conflitos interiores estão presentes em toda a sua obra.

Anónimo disse...

Gostei de reler o conto, mal me lembrava dele.

Carla disse...

Já tinha saudades de uma palavrinha sua, habituou-me mal e agora está "desgraçada" comigo, ih ih. Viu que estou a participar num concurso para os trabalhos e blogs com imaginação, tem que ir espreitar e votar no blog que mais gostar, estão trabalhos muito bons, serve essencialmente para que os artesões se conheçam. Um bj vou ler o conto.

Carla disse...

Oh minha querida, pode votar em todos os que gostar, não tenho nenhum interesse nos prémios em jogo, era para que pudesse apreciar os imensos blogs que surgem todos os dias e alguns trabalhos girissimos que surgem todos os dias. Em todos os que gostar deixa um comentário, o blog mais comentado é o vencedor. Um bj

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