António Serrão De Castro (ou Crastro)
(1610 – 1685(?)
“Pertenceu à Academia dos Singulares. A sua poesia é essencialmente satírica, jocosa e burlesca.
O Santo Ofício, sempre de afiados dentes, rangedor, não levava a bem as brejeirices deste cristão – novo. Tanto o perseguiu que acabou por o reduzir à mendicidade e a metê-lo dez anos na cadeia.
A sua obra perdeu-se, restando, apenas, o poema Os Ratos Da Inquisição”.
Inspirando-nos no seu poema, vamos homenageá-lo com
A CASA DA INQUISIÇÃO
I
Casa de má qualidade,
bem cheia de predadores
e de falsos pregadores.
Ali vive a falsidade,
também a rapacidade.
Os moradores são ratos:
uns, mentirosos beatos;
outros e mais numerosos,
bichinhos mui asquerosos,
fruto dos bárbaros tratos.
II
Os primeiros, anafados,
de tanto os outros roubar,
de muito os espezinhar.
Os segundos, desgraçados,
constantemente espancados,
de tudo os espoliaram
e a alguns a vida tiraram.
Porém, que crime era o seu?
Ter em si sangue judeu?
Esta Pátria sujaram!
III
Os “Grandes”, com seus pespontos,
são óptimos alfaiates,
sabem fazer bons remates,
tapar buracos com pontos
depois de roubar os contos
que eu tinha no meu bornal.
Ordenou o “ Principal”
o que os lacaios fizeram.
Minha vida não quiseram,
mas foi primeiro sinal.
IV
Meu ser é velha farpela:
de dia remendos ponho,
de noite com eles sonho;
de repente uma “cadela”,
escapando-se da trela,
descose o trabalho meu:
rasgado, nem pareço eu.
Mas o que hei-de fazer
para com todos viver
debaixo do mesmo céu?
V
Arrebatado – e sem norte –
pelas unhas dos ratões,
disse para os meus botões:
vou tentar a minha sorte
p’ra escapar à triste morte,
propondo-lhes que metade
da minha fertilidade
ficaria para eles.
foram mentirosos e reles.
Roubaram tudo à vontade.
VI
Que bom seria a vingança
p’ra saldar o prejuízo
aos trapos, meu paraíso:
poria em abastança
os ratos de boa pança
numa canastra de gatos
com fome e nada pacatos.
Escondido ficaria
a ouvir a gritaria
dos tratantes clericatos.
VII
Que fizeram os cristãos – novos
para terem esta sina?
P’ra fradalhada, a latrina;
escárnio de outros povos;
pitéu dos malvados “corvos”!
Meus escritos destruíram
o que os Céus construíram:
minha vida. Na prisão
estive e por galardão
co’a cegueira me feriram.
VIII
Dez anos há quem espere
viver, fechado, sem luz,
o chão, querido Jesus,
com sujo aido confere?
Quem o viu também refere
haver água p’la cintura,
os dejectos com fartura,
a fome colando as tripas.
Arrancaram as farripas,
mas a mente ainda dura!
IX
Deus livrou-me do garrote
e da procissão até
à fogueira. Da ralé
o ruído brejeirote
fere – me como um chicote.
No mundo pouco vivi;
só aos pobres eu pedi.
Quando eu na rua passava,
o povo até me insultava:
Eh! judeu, fora daqui
X
Quem me dera que esta boda
p’ra eles tivesse fim
e que o castigo, enfim,
tivesse má sorte toda
através de dura roda.
Porém, os ratões à Morte
tomaram –na por consorte.
Tudo lhes corre à feição.
Usam a religião
p’ra dos roubos o suporte.
Vocabulário
ratos= supliciante e supliciado
grandes= dirigentes do Tribunal do Santo Ofício (Inquisição)
pespontos= ponto de costura
Principal = dirigente – mor do Tribunal do Santo Ofício
Cadela = oficial da Inquisição
norte = rumo; desnorteado(sem rumo)
ratões = oficiais da Inquisição
fertilidade = riqueza
“Corvos” = apelido pejorativo de clérigo inquisitorial
confere = estar conforme
farripas = cabelo raro
roda = instrumento de suplício
Agostinho Alves Fardilha (o meu pai)
Coimbra
Foto: internet
16 comentários:
Eles comem tudo...eles comem tudo...
Soberbo e correcto poema para homenagear o poeta.
Abraço.
AA.
Uma bela homenagem
a uma personagem
que eu desconhecia!
Saudações poéticas
Belo poema
Suprema Homenagem!
Adorei a forma e a verdade transformada em poesia.
Poeta infeliz - It´s a pity...
Maria Luísa
Extraordinária poesia.
Era preciso muita coragem para escrever assim...
Querida amiga, bom domingo e óptima semana.
Beijos.
Minha Querida
Adorei esta poesia onde a verdade foi pintada nua e crua!
A Inquisição foi uma página negra na vida da Igreja. João Paulo II pediu muitas vezes perdão por todas estas barbaridades.
Agora aqui para nós- que ninguem nos ouve - os ratões (talvez outros) ainda não se foram embora. - Há-os bem gordos e luzidios, comendo à custa da fome de muitos outros.
Belissimo!
Beijo
Graça
Fez-me lembrar o lado B de um single de Zeca Afonso dos inícios de 60... "Os Vampiros"!!
(... eles comem tudo e não deixam nada!")
Olá Elisa!
Dá os meus parabéns ao teu Pai!
Eu concordo inteiramente com a(o)s comentaristas anteriores. Noutro sentido mas os ratos ou melhor as ratazanas continuam bem anafadas...
Bj
Milai
Muito, muito bom, Lisa. Ainda ontem me lembrei desta época negra da religião; fui ver o Discurso do Rei e lá estava o maldito clero tentando influenciar o rei a compactuar com as suas ideias maldosas. Mas, como diz a nossa amiga Graça, ainda há muitos ratões por aí..... Beijinhos e tenha uma boa semana, sem chuva de preferência.
Emília
E quem diria que tudo caminha tal qual a época do acadêmico Crastro, a famigerada Inquisição.
os ratos andam por todos os lados ... comendo , devorando-nos! rsrs
abraços Sr.Agostinho
Gostei demais!
Hoje mais que nunca apropriados esses versos.
Abraços,Bergilde
Que linda homenagem !!
Que ímpeto corajoso.
bjs e boa semana pra você.
Olá!
Bela homenagem!
Bj
Mena
Elisa querida !!
Tem um presentinho pra você no meu blog passa lá ...
beijos
Aplausos para este belíssimo momento de poesia!
Beijinhos
Bem amiga escrever assim nessa altura só podia ser preso ou andar sempre a fugir. É realmente extraordinário esse poema. Beijos com carinho
Este testemunho vivo e real fez-me sentir muito pequenina.
O que nós somos afinal, quando queremos combater o mal que nos rodeia???
Há e haverá muitas formas de combater o
"errado"!
Todos os meios atingem os seus fins(bons ou maus).
Mas esta forma poética de relembrar e de homenagear quem o merece é notável.
A exposição detalhada de todo o mal sofrido por alguém e por outros em geral, que foram vítimas da Casa da Inquisição, está mergulhada numa"pura autenticidade dos factos",que me limita o meu poder de argumentação.
É tudo tão real! Que mais se poderá dizer?
O segredo, a arte,a magia de bem
escrever faz-nos sentir o que se passou "há tempos".
Não acrescentarei nem um ponto, nem uma vírgula.
Perante tal veracidade , nasce um sentimento de culpa.
Como os seres humanos ,podem(puderam) tão mal tratar outros seres humanos???
Como procedemos para com o nosso semelhante?!
Há uma grande interpelação!
Só quem não quer ver e sentir poderá deixar passar este trabalho em vão.
O início desta poesia é retumbante!!!
«Casa de má qualidade,»
Nada mais a acrescentar.
Se a qualidade era (é) fraca, haveria(haverá) por ventura algo que se pudesse(possa) fazer?
Se as casas não são um espaço e um lugar, o que são afinal?
Serão tudo menos "um lar" onde não reina a harmonia nem a paz.
Então só
«...vive a falsidade».
Na vida de hoje, século XXI, quantos de nós nos vemos mergulhados na agitação e no burburinho do dia a dia:sentimo-nos envolvidos por tantos problemas, trabalhos em excesso, imprevistos e situações incompreensíveis, que acabamos por ficar nervosos e até perdemos o controle sobre nós próprios e só com muita sorte é que somos salvos do desespero:
«Deus livrou-me do garrote»
Quantas vezes
«Quando na rua passava,
o povo me insultava:»
É o dilema que travamos connosco quando queremos fazer o melhor e não nos entendem e como se não bastasse ainda somos motivo de chacota.
«Eh!judeu, fora daqui»
Se constatamos, com os
«...predadores
e de falsos pregadores.»
«Tudo lhes corre à feição.»
Infelizmente, usam qualquer meio para atingirem os seus fins!
«Usam a religião
p'ra dos roubos o suporte.»
Todos estamos desanimados com "os meios" que estão a ser utilizados .
E assim
«Os "Grandes",com seus pespontos,
são óptimos alfaiates,
sabem fazer bons remates,»
Caminhamos a passos largos ,para uma nova Inquisição???
Que pena! Que tristeza!
Interrogamo-nos sobre este estado do Povo Português.
«Mas que hei-de fazer
para com todos viver
debaixo do mesmo céu?»
Que fizeram "os portugueses" para tanto sofrer?
«Que fizeram os cristãos -novos
para terem esta sina?»
O que escreverão os poetas daqui a algumas décadas???
Terão muito que escrever...tenho a certeza!!!
Mais uma vez agradeço e felicito o nosso grande poeta Agostinho Fardilha.
Com muita agudeza, dá um sinal de alarme.
Convida também à concórdia e responsabilidade para enfrentar o
futuro.
Cumpre o seu dever de cidadão:alertar e dar testemunho da sua fé.
Obrigada.
PARABÉNS!
Para a filha Elisa, um abraço de felicitação.
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