sábado, abril 18, 2009

Um conto de que gostei

Livre – arbítrio

Um anjo caiu do futuro e estatelou-se em pleno Chiado. Levantou-se, sacudiu a poeira das asas, ensaiou dois ou três passos, ainda um tanto aturdido, e finalmente interrogou Fernando Pessoa:




“Pode dizer-me em que tempo estou?”

Era Inverno, mas a noite, límpida e seca, poderia ser de Verão – excepto pelo frio. Nas ruas não se via alma. O poeta ergueu-se devagar do seu silêncio de bronze e espreguiçou-se. Estudou, sem surpresa, o viajante. Suspirou, enfim, morto de tédio:

“Em toda a parte o tempo é semelhante. De onde você vem, por exemplo, não há com certeza mais nem melhor futuro do que aqui. Eventualmente, haverá apenas um pouco mais de passado.”

O anjo era um tipo pálido e esguio. A sua silhueta recortava-se na noite como um simples traço de giz num quadro negro. Estava inteiramente nu e todavia isso não parecia incomodá-lo. Dir-se-ia imune ao frio. Fernando Pessoa esforçou-se durante um breve instante por aparentar alguma simpatia (há que ser simpático com os estrangeiros).

“Lá, de onde você vem, não se usam roupas?”

“Usam, mas ninguém viaja vestido através do tempo.”

Pessoa desinteressou-se do viajante e voltou a sentar-se. O outro postou-se muito sério diante dele; os olhos, de um azul etéreo, quase transparentes, fixaram-se nos olhos absortos do poeta. Falava pausadamente, num esforço por dar às palavras a sua inteira substância, sílaba a sílaba, como quem só há pouco aprendeu o idioma. O sotaque era macio e quente, um pouco cantado:

“O que eu quero é saber se este é o tempo das guerras.”

Fernando Pessoa encolheu os ombros magros:

“É tempo dos homens, o que vai dar o mesmo”. Indicou a cadeira ao seu lado esquerdo: “Não se quer sentar? Podemos fazer de conta que estamos os dois a beber um café…”

O anjo sentou-se de cócoras na cadeira, como um adolescente, o queixo apoiado nos joelhos e os braços prendendo as pernas. A cabeleira comprida, muito loira, quase lhe ocultava as asas.

“Vim em busca do ódio.”

“Veio em tempo certo. Lembro-me do ódio desde muito novo. Lembro-me do quanto eu lhe era alheio…Posso saber porque lhe interessa esse tema?”

“Curiosidade. Pense em mim como um investigador.”

“Compreendo”, murmurou Pessoa: “como um antropólogo entre os canibais.”

“ Não”, corrigiu o anjo: “como um zoólogo entre os chacais.”

Fernando Pessoa concordou. Visitavam-no ali, n’ A Brasileira, toda a espécie de excêntricos. Um viajante do futuro, nu e com asas, em busca do mal, era do mal o menos. Sentia pesar-lhe sobre as pálpebras um grande sono metálico. Queria fechar os olhos e dormir. O anjo, porém, não o largava:

“Veja –bem, o livre –arbítrio…”

“O que tem o livre- arbítrio?”

“O livre- arbítrio permite que o senhor adormeça nessa cadeira, agora, ou que se levante e vá pela cidade em busca da beleza da vida. O livre- arbítrio permite que os homens escolham entre o ódio e o amor…”

Fernando Pessoa começava a sentir um nervoso miudinho a subir-lhe pelas pernas. Seria o sono; seria aquele tipo com asas e a sua vã filosofia, ou tudo isso junto numa noite de Inverno. Cortou irritado:

“Pois o que eu quero é dormir!...”

O anjo assustou-se com a veemência do poeta.

“Certo. Consigo compreender a sua escolha. Mas entre o amor e o ódio o que leva um homem a escolher o ódio?”

Fernando Pessoa não respondeu. Vieram-lhe à memória, sem motivo algum, imagens da sua infância em África. Ele nunca falava daquele tempo. Os dias eram cheios de vento. Os ossos estacavam, ao sol, sob a pele, como coisas antigas. Algures, na imensidão das tardes, ladravam cães. Voltou a ouvir o eco disperso dos gritos. Um menino, numa bicicleta, fugindo da turba (teria roubado a bicicleta?). Certa ocasião, numa estrada abandonada, vira uma coisa incrível: uma roseira explodindo em pleno asfalto.

“ Não sei”, disse. “Talvez o vazio. Talvez as pessoas se tenham esquecido de que existe livre-arbítrio.”

O tempo mudou com a madrugada. Choveu. Uma água mole, exausta, que a luz do sol atravessava com esforço. Os primeiros transeuntes que passaram, apressados, diante d’A Brasileira, estranharam um pouco: não havia ninguém sentado à mesa do poeta.


José Eduardo Agualusa
Livre- arbítrio In “Contos Que Contam”



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