terça-feira, novembro 03, 2009

Trovas (continuação)





“Quem, neste mundo, amou de mais, terá, no outro, cuidados dobrados”.
Será assim?
Cessou toda a berraria,
montão de vultos disformes
em mim seus olhos enormes
fixaram, estando em sangria.
Um deles, chamado Orfeu,
cantor, músico famoso,
todo o animal furioso
com ele sempre viveu,

ergueu-se e assim falou:
estou a penar aqui,
leis divinas transgredi;
p’r inferno mulher voltou.
No mundo amei Euridice,
subjugando-me a Cupido
de paixão sempre munido;
cometi a mor doidice!

Não pode haver de momento
cá e lá apenas folgança.
Aí, bem-aventurança,
aqui, horrível tormento.
O que custa suportar
é recordação havida
da alegria aí vivida
sem esp’rança de voltar.

Se não queres este viver,
tal rumo abandona já.
A quentura é tanto má
que nos faz muito sofrer,
trespassando-nos de frio,
trazendo aos sentenciados,
eternamente penados,
mui doloroso arrepio.

Olha p´raquelas cavernas,
são cheias de atormentados.
Por amores desvairados
as dores são mais internas,
repara: Dido lá vem.
Foi vítima de Cupido,
bom era não ter nascido.
O amor vingou-se também.

Ouve a minha opinião:
se desejas ser feliz,
usa como directriz
guiar-te pela razão.
Obedecer à vontade
dos nossos cinco sentidos
é para sermos ardidos
por toda a eternidade.

D’instantâneo e chorando,
Orfeu meter-se na bruma
talvez pesaroso, em suma,
do seu antigo desmando.
Fui levado donde vim
sem estar de tudo informado.
Fiquei muito baralhado:
que será agora de mim?
(continua)
Agostinho Alves Fardilha (o meu pai)
Imagem:iupui.edu

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