segunda-feira, setembro 24, 2012

Momento de poesia com Agostinho Fardilha

António Feliciano de Castilho
(1800-1875)

“Desde cedo, os novos símbolos e formas de expressão ( o medievalismo, o folclorismo, os temas individualistas sentimentais) deixaram de exprimir qualquer coisa de novo para se converterem num simples jogo de imagens e palavras, que só mascarava as realidades e as sinceras aspirações humanas, tal como acontecia com as velhas convenções arcádicas.
Castilho é a figura que melhor representa este aspecto e esta evolução formalista do Romantismo.
Depois de uma fase arcádica, representada pelas Cartas de Eco a Narciso (1821),em que cultiva o bucolismo das convenções greco-latinas, adopta mais tarde o medievalismo romântico de recorte melodramático, escrevendo os poemas narrativos Os ciúmes de Bardo e Noite do Castelo.
A sua influência literária cresceu com a sua direcção da Revista Universal Lisbonense e exerceu-se cada vez mais no sentido da chamar a atenção para os cuidados formais da versificação.
A geração coimbrã que em 1844 se reuniu em torno da revista O Trovador e em que de início se reflecte o desinteresse ou cansaço pelos conflitos inerentes ao constitucionalismo (João de Lemos, Rodrigues Cordeiro, etc) foi acarinhada por Castilho.
A partir de cerca de 1855 as tendências de crítica social, de observação realista da actualidade, de exaltação progressista reforçam-se entre nós, quer na ficção em prosa, quer no teatro, quer na poesia, seguindo, aliás, o rumo do Romantismo europeu, especialmente o francês.
Castilho não podia sentir-se, pessoalmente, com tendências para tal modalidade de poesia. Torna-se, por isso, muito mais significativo o facto de, acompanhando a evolução dos gostos, ele estender as mãos aos novos poetas, excedendo-se no seu entusiasmo até ao ponto de provocar questões literárias, como Questão Coimbrã (foi o seu prefácio elogiativo ao narrativo e insulso Poema da Mocidade (1865), de Pinheiro Chagas)”.

Vamos tentar assimilar as diversas facetas poéticas de Castilho, através das composições, que se seguem.




Um Sonho

Certa noite tive um sonho,
um sonho muito esquisito:
asas emprestou Morfeu,
parecendo eu um mosquito.

Transportaram-me a um mosteiro,
sendo as costas a montanha
e o rosto virado ao mar.
Se vida havia, era estranha.

Entrei e um frio arrepio
percorreu todo o meu ser:
os túmulos no lajedo
faziam o medo haver.

Escuridão e silêncio
cortados pelo piar
do mocho na esguia torre
faziam tétrico par.

De repente santuário
ficou todo iluminado:
ajoelharam as monjas
e ouviu-se canto sagrado.

O coro depois calou-se.
O escuro tornou a vir.
Pareciam elas fantasmas
que se puseram a rir.

Resolvi ir até às celas.
Espreitei e uma virgem
lavada em lágrimas era;
ela não estava bem.

Muito tempo nós falámos,
revelando sem temor
que nossos dois corações
eram carentes de amor.

Um ao outro nós jurámos,
de ambos fazermos um só.
Mas entretanto acordei:
meu rosto metia dó.

Vou procurar o mosteiro
e a triste religiosa.
Talvez ela ainda queira
ser a minha linda rosa.


Exigências do Amor

P’ra viver um amor puro
na montanha me escondi,
ocupando uma caverna,
iIgual mansão nunca vi.

O meu palácio, por dentro,
forrei-o de quentes peles,
a porta de musgo e flores;
adoço o leite com meles.

Há rebanhos sem pastor;
pássaros sempre a cantar.
Frutos e ervas são meu comer.
Ora, há tempo p’ra sonhar.

Preferi este ermitério
para da Amada estar perto.
Ela conhece a montanha,
sabendo onde estou ao certo.

De dia, ao longe me vê:
ponho-me num descampado;
de noite, o lume é sinal
onde pára o seu Amado.

Haverá amor mais singelo,
quando até o rouxinol,
cantando frente à janela,
diz-lhe no céu haver Sol?

P’ra melhor a contemplar
subo a íngreme penhasco.
Com dedos trocamos beijos
e minhas penas descasco.

Suplico a uma andorinha
que à minha Doçura diga
que estou bem e de saúde
e a ela Deus a bendiga.

Teus pais breve hão-de vergar
perante a grande paixão.
Sinto em toda a Natureza
nossa feliz união.

Boas novas a mim chegaram:
acabou-se o cativeiro.
Vamos depressa à Ermida,
olha, o monge é dianteiro.


Minhas Liras são rebeldes

Quis narrar esse acto horroroso de Atreu,
de Tiestes irmão.
Porém, minha lira não obedeceu.
Soou outra canção.

Sempre teimosa lhe ouvi cantos de amor.
Tentei Cadmo honrar:
fundou Tebas e da escrita seu inventor(?).
Só “falou” de amar.

Fui buscar outra lira, há pouco comprada.
Voltei aos Atridas:
quem, porquê, preparou tão atroz cilada,
roubando essas vidas?

Cantigas de amor ares contaminaram.
Cordas removi.
Os feitos de Alcides meus dedos tentaram.
Sons de amor ouvi.

Humana gente, outra lira procurai,
se aplausos quereis.
Das cordas das minhas liras só se extrai
do amor, suas leis.

Agostinho Alves Fardilha (o meu pai)
Coimbra

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