sexta-feira, fevereiro 24, 2012

Momento de poesia com Agostinho Fardilha

José Anastácio da Cunha

(1744 – 1787)



“José Anastácio da Cunha, vindo de gente pobre de Lisboa, pôde estudar com os Oratorianos e fazer carreira de oficial artilheiro, o que permitiu contactar com estrangeiros cultos, especialmente ingleses, que Pombal contratara para reformar o exército. Pombal eleva-o a catedrático de Geometria; mas tornam-se conhecidas as suas dúvidas em coisas de religião, o seu racionalismo tolerante do que lhe adveio a prisão e a participação num auto- de- fé, descalço e em hábito de penitência.

Anastácio da Cunha praticou ainda os moldes arcádicos, tentando mesmo aportuguesar a métrica quantitativa do Latim. Contudo, o que o distingue é ter descoberto poesia na relação carnal entre o homem e a mulher. No tempo, isto significava a dissipação de todas as convenções da erótica cortês – ao que não pode ser alheio o facto da sua amada ser simples camponesa. Os momentos mais belos desta lírica nova são a redescoberta estonteante de como o princípio da individualização se eclipsa no abraço amoroso, a pergunta de se (tu não és eu?).

 Dele ficaram alguns dos mais apaixonados versos de amor que se escreveram em língua portuguesa, a primeira expressão de angústia e incerteza em relação a Deus, e uma das manifestações mais claras do nosso pré-romantismo, de que foi um dos incontroversos arautos”.



Lembremos o Poeta com os sonetos e a cantata, que se seguem



Sonetos

I

Tu e as tuas graças


O tempo não apaga tua graça.
Quando falas, graças irei ouvir,
tão engraçadas que terei  de rir
se à minha boca não puser mordaça.

Tuas graças excedem as três divindades,
Envolvem teu belo e sensual corpo,
fazendo dele perfumado horto,
onde fartarei minhas saudades.

Elas rodeiam teus níveos seios,
afagam as carinhosas mãos tuas,
os mimosos pés enchem de floreios.

As faces escurecem as quatro luas:
essas graças usam de todos os meios
para só eu ver essas ancas nuas!


II

Triste sina

Maior paixão não há: rostos chegados,
corações, sensuais, num só fundidos.
Eu e tu, neles, estamos esculpidos:
jamais alguém os fez melhor gravados.

Lembras-te, meu bem, quando me disseste:
Amor, “ eu não sou tu?”; “ tu não és eu? “
Sinto que grave, mas falso, labeu
vai afectar tanto amor que me deste.

Ímpias leis rejeitam o nosso amor.
Acusado sou da Igreja ofender.
Vou sofrer da Inquisição o terror.

Separados, mas jamais esquecer
que a fidelidade suporta a dor
e a esp´rança de outrora faz renascer.

Cantata

Uma cara linda vi
à sombra do castanheiro.
Ela corou e eu sorri.
Indaguei o que fazia.
Respondeu-me que à fonte ia.

Seu nome lhe perguntei.
Tímida, disse ser Guida.
O que aconteceu, não sei.
Toda ela me conquistou.
Cupido , a rir, se esquivou.

Filha do povo da terra,
era um diamante puro,
que toda a beleza encerra.
Parti, mas disse voltar
para com ela falar.

Foi amor à primeira vista:
a mão branca e delicada
com as minhas ficou mista.
Nossas bocas sequiosas
rubras ficaram quais rosas.

Apertei-a contra o peito.
Nada dissemos um ao outro.
A vontade havia feito
o que queríamos os dois:
Amor e prazer depois.

E assim decorria o tempo:
dois amantes, o mesmo amor!
Nunca foi um passatempo.
Serás sempre o meu encanto
e a causa do nosso pranto.

Torpes inquisitoriais,
o Criador sempre disse
a nós, também animais:
uni- vos e assim crescei
segundo a Natural Lei.

Onde é que existe o pecado?
O prazer sustenta o amor!
Mas fiquei encarcerado.
Da Guida me separaram.
Logo meus olhos choraram.

Suas cartas deram vida,
muita força na masmorra.
Mulher corajosa és Guida.
O nosso amor sempre dura
té na fria sepultura.

Prevenção, apaixonados,
de dois, um só coração.
Evitai os celerados.
Nos dois, a sinceridade
atrai logo a saudade.

Agostinho Alves Fardilha (o meu pai)
Coimbra

Fotos: internet

ShareThis